Lugar Nenhum

lugar.jpgLugar Nenhum tem dois pontos contrastantes. Por um lado, ele é extremamente cativante, especialmente sob a ótica fantástica da cidade de Londres-de-Baixo onde o que realmente importa para o enredo acontece. Em contrapartida, o que lhe sobra em ambientação falta no carisma dos personagens: especialmente em relação ao protagonista que é completamente desprovido de personalidade.

Richard Mayhew é um homem pacato com um emprego que não lhe satisfaz e uma namorada que o molda de acordo com as próprias vontades. Sua vida é guiada pelo trabalho que consome todo seu tempo e pela procrastinação constante de qualquer coisa que por ventura pudesse lhe trazer algum prazer pessoal. Em dado momento, ele escolhe ajudar uma garota ferida que encontra nas ruas e dali em diante se vê envolvido com toda a sorte de pessoas marginalizadas da cidade. Estas formam uma sociedade própria com um pé (ou os dois, melhor dizendo) enfiados em um mundo de fantasia que está além do alcance dos sentidos. E sem perceber, Mayhew também deixa pouco a pouco de existir para a Londres-de-Cima.

Talvez o fato de ter sido inicialmente concebido como uma série de TV é o que deponha contra Richard. Quem sabe na outra mídia sua atuação tenha sido menos irritante. Boa parte do conformismo e das dúvidas do escocês que se muda para Londres para trabalhar também são nossas, quanto leitores. Por ele nos representar no papel e ser dele a função de mostrar o “outro mundo” através de seus olhos, cada escolha patética e covarde dele nos atinge e nos irrita. Mesmo suas opções ao final do enredo são previsíveis. O único ponto verdadeiramente positivo em relação a ele no livro se dá no momento em que o autor coloca em cheque a possibilidade de Richard estar simplesmente maluco.

Por isso, quem realmente dá show no livro de Gaiman é a própria Londres-de-Baixo. Todo um universo oculto de nós por um véu de ignorância e descaso. Desde os ratos e pombos que vivem de nossos restos até o mais famoso dos mendigos e lunáticos que habitam os recantos escuros de nossas grandes cidades, todos eles fazem parte de um lugar parcialmente victoriano, recheado de lendas e motivos próprios que os habitantes ocupados com seus trabalhos e compromissos jamais poderiam suspeitar.

Como conto de fadas moderno, Lugar Nenhum cumpre seu papel de ser fantástico, bonito e muito bem escrito. Várias das idéias colocadas no livro são ótimas e levam nossa imaginação ao limite na busca de novas possibilidades, lugares e nuances. Um livro muito bom cujo único pecado foi embasar-se demais no estereótipo de homem comum e explicar de menos as pessoas que realmente fizeram a história. Mesmo que a intensão desde o começo não tenha sido explicar demais para permitir que a fantasia ganhasse força, ao fim fica uma sensação de que “podia ter sido melhor”.